O rei da Zona
Na adolescência, quando íamos a pé ao
Limeira Clube, passávamos pelo baixada da Cunha Bastos, em frente da
“misteriosa” Vila Cambuí, para atravessarmos a linha de trem e chegarmos à Vila
Queiroz. Como seria lá dentro? Como aquelas mulheres viveriam já que à noite
estariam prontas para o deleite dos senhores da sociedade da época, que
desfrutavam aquele local proibido para menores de idade, como nós.
Já nos chamava a atenção quando elas
desfilavam nas charretes existentes na época, muitas vezes que as levavam na
praça para irem ao cinema e sentavam na parte superior, de forma discreta, como
se as maquiagens não as denunciassem. Lembro que cochichávamos uns aos outros,
apontando nossos dedos, pensando no dia em que, quando maiores, poderíamos
freqüentar aquele ambiente emblemático que era “tolerado” pela sociedade.
Final dos anos sessenta a pílula, a
revolução dos costumes, mudou tudo isto. As namoradas passaram a serem
parceiras e deixaram de serem bonecas ou princesas que precisavam ser
preservadas até subirem ao altar, elas passaram a ocupar os seus papéis
próprios. E com isto para a minha geração em diante o interesse por freqüentar
um prostíbulo passou a ser secundário, mas permanecia o glamour das histórias
contadas pelos mais velhos como das casas da “Eny” em Bauru, o “Galo de Ouro”
em Campinas, da “Conchita” em Limeira, o sobrado da “Luz Vermelha” em Barretos,
sem falar do “Bataclã” em Ilhéus, imortalizada nas páginas geniais de Jorge
Amado.
Então, muitos anos passados, nossa turma
estava comemorando o aniversário de alguém numa chácara qualquer, após um dia inteiro de churrasco e
muita cerveja, enquanto alguns já haviam se recolhido, nos três (Mário, Pedro e
eu), últimos remanescentes, resolvemos tomar a “saideira” numa dessas casas
“pouco recomendadas” nas proximidades.
Extenuado pelo dia cheio, pedi uma
cerveja, sentei isolado numa mesa afastada, avisei a garçonete que era só
aquilo que procurava e fiquei observando o movimento de longe, onde um grupo de
estudantes desconhecidos, bem alterados, extravasava no consumo e no alvoroço.
Até que uma das “meninas”, patrocinada por algum freguês, subiu ao palco para
fazer um strip-tease ao som de uma música e dançava de uma forma provocante e
sensual.
Os estudantes passaram a hostilizar a “bailarina”
com brincadeiras, gozações, ofensas e foi então que a garota, indignada, cessou
a apresentação, dirigiu-se aos rapazes, pediu que parassem, pois estavam
atrapalhando a sua apresentação. Mas a molecada nem deu bola e continuou com
mais brincadeiras de mau gosto, insultos, apelações.
Ali no meu cantinho, sozinho, degustava calmamente
a minha cerveja e observava aquela algazarra toda. Tenho uma formação à moda
antiga: do fio de bigode; de devolver o carrinho do supermercado, mesmo com
chuva; de pedir licença e dizer obrigado; de, muitas vezes, assumir a culpa
para proteger subordinados e diante daquele espetáculo, embalado pelo teor alcoólico,
num ímpeto de “salvador dos fracos e oprimidos”, levantei-me, fui até a mesa
dos desordeiros, mesmo eles estando em muito maior número, passei-lhes uma
descompostura severa falando do direito da moça trabalhar, ganhando seu dinheiro
honestamente mesmo que eles não concordassem com aquele tipo de trabalho, sob o
olhar estupefato dos meus amigos sentados à distância. Acabei literalmente com a farra.
No dia seguinte, o Mário e eu voltamos
para Limeira e o Pedro, convidado por um vizinho, foi almoçar na casa do mesmo.
E lá estava um dos rapazes da noite anterior que logo foi dizendo: “Pô, cara, aquele seu amigo é bravo pra
caramba. Acabou com aquela bagunça e colocou ordem na zona”.
Quando o Pedro me contou, ri das cenas
daquela noite e me senti o verdadeiro “Rei da Zona” dos devaneios da minha
juventude longínqua.
Sérgio Lordello
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