O relacionamento perfeito




Lya Luft

        O assunto pode ser dramático ou engraçado, tão humano e tão difícil de entender.
        A mim, sempre buscando explicações e significados porque tão pouco entendo, me ocorre falar ou escrever exatamente sobre aquilo que menos sei. Trabalho interminável, espécie de suplício de Sísifo: o pobre todo dia empurrando montanha acima uma grande pedra que voltava rolar pela encosta, a fim que o torturado recomeçasse mais uma vez.
        Querer alcançar o significado das coisas, da vida, das gentes, de seus relacionamentos e desencontros, é um pouco assim.
        Seguidamente me indagam – ou tento imaginar – o que seria um relacionamento perfeito. Eu ia escrever “casamento”, mas preferi a outra palavra, porque ela não tem nada a ver com cartório e burocracia, opressão ou coerção social e familiar: tem a ver com querer se ligar a alguém, e querer continuar ligado.

        Cada dia, ao acordar, fazer de novo a escolha: eu quero mesmo é você comigo.
        Mas “perfeito” é uma palavra tola: perfeição, só no céu de todas as utopias. Aqui, nesta nossa terra nada utópica, perfeição me parecia um pouco entediante: como, nada a reclamar, tudo assim direitinho?
        Olho pela janela e bocejo: muito sem graça, a tal perfeição. O céu com os anjos tocando harpa pelo tempo sem tempo me deixava pasmada já na infância. Nada mais? Nem uma brincadeira proibida, um escorregão nas nuvens, uma risada na hora do sagrado silêncio... nem uma transgressãozinha na ordem celestial?

        Minha alma indisciplinada não encontraria alimento nem estímulo, e ia-se desfazer em fiapo de nuvem embaixo de algum armário onde se guardassem os relâmpagos e os trovões, e todas as duras sentenças.
        Então, relacionamento perfeito, nem pensar.
        Mas uma ligação de cumplicidade e ternura, de sensualidade e mistério, ah, essa eu acho que pode existir. Como todos os contratos (não falo dos de papel mas de corpo, coração e mente, esse precisa ser renovado de vez em quando: a gente tira o contrato da gaveta da alma, e discute. Briga talvez, chora, reclama, mas ainda ama, ainda deseja. Ainda quer o abraço, o passo no corredor, o corpo na cama, o olhar atento por cima da xícara de café... quer até a desorganização e a ruptura, para depois de novo o que é bom se reconstruir.

        Que seja vital: isso me parece uma boa parceria. Que seja dinâmica, seja lá o que isso significa em cada caso. Pelo menos não acomodada; mas muito aconchegante.
        Que seja sensual e amiga, essa ligação: se não gosto do outro como ser humano, com seus defeitos, sua generosidade e egoísmo, força e fragilidade, se não o quereria como amigo... como então, mesmo com tempero do desejo, posso me relacionar com ele uma vida a dois?
        O tema é quase infinito: pois cada caso é um caso, assim como cada casal é um casal, e cada fase da vida do indivíduo ou dos dois é diferente.

        O bom é quando essa constante transformação se faz para maior cumplicidade, e não mais distanciamento.
        Que um relacionamento não seja uma prisão; que não seja enfermaria nem muleta; mas que seja vida, crescimento (turbulências eventuais incluídas).
        Que seja libertação e ajuda mútua; não fiscalização e condenação, a sentença pronunciada numa frase gélida ou num olhar acusador, ar de reprovação ou lamúria explícita.

        Que seja cumplicidade, porque a vida já é difícil sem afetos. O som dos passos no corredor pode ser um conforto inacreditável, o corpo ao lado na cama uma âncora para a alma aflita. O entendimento recíproco é um oásis no isolamento desta nossa vida pressionada por tempo, dinheiro, regras, mil solicitações de família, trabalho, grupo social, realidade do mundo.

        Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós.




Este texto faz parte do livro da escritora e cronista Lya Luft: “Pensar é transgredir”, Editora Record.

Comentários

Postagens mais visitadas