Que a morte de Aylan não seja em vão


         O seu corpo ainda vestido, pequenino e franzino, jazia na beira do mar, onde ondas beijavam de leve o seu rosto infantil. O policial aproximou-se, viu ainda a sua camiseta vermelha, a calça jeans e os pequenos tênis ali inertes, colocou o menino de três anos no colo, ainda de bruços e o carregou, a passos lentos, em direção as equipes de socorro, mas não havia mais o que fazer. Durante aquela noite, num gesto desesperado, seu pai, aliciado por contrabandistas de pessoas, pagara dezessete mil reais para levar toda a sua família, num barco tosco, a cruzar o mar, tentando fugir do terror instalado em seu país, apostando chegar à Grécia, para depois, se possível, atingir o Canadá onde alguns outros seus familiares os esperavam. Mas o barco não resistiu a sua precariedade e afundou levando consigo o pequeno Aylan, seu irmão de cinco anos e sua mãe. O pai se salvara, talvez para recolher os corpos e enterrá-los nas suas cidades de origem na Síria.
         A foto do policial carregando o corpo de Aylan foi estampada em todos os jornais do mundo, desnudou a todos nós e calou a nossa alma. Todos nós nos perguntamos como pode a nossa espécie possuir nas suas entranhas traços de tanta perversidade. Todos nós nos sentimos um pouco responsáveis por aquela tragédia que se repete todos os dias e todas as noites com milhares de vitimas desse mundo cruel que legaremos para os nossos filhos e netos.
         Para o menino Aylan aquele dia seria apenas mais uma etapa de uma viagem para um país distante onde haveria praças para brincar, casa para morar, cinemas, shoppings para passear, escola para estudar, sorveterias, parquinhos, onde poderiam sair sem medo de serem emboscados ou sofrerem atentados no caminho. Coisas que ele nem tinha ideia como fossem, pois desde que nascera lutou constante e incessantemente contra a morte, escondendo-se de bombas, procurando remédios, comida... Ele não entendia porque sua mãe, muitas vezes às pressas, corria na direção dele e do irmão, os abraçava e os protegia com seu corpo, enquanto os estrondos das bombas chegavam cada vez mais próximos do seu cantinho.
         Depois da foto de seu corpo percorrer o mundo pela mídia, pela internet, os mesmos jornais passaram a estampar manchetes mais esperançosas para o mundo:
         - “Alemanha anuncia pacote de seis bilhões de euros para ajudar imigrantes”;
         - “O papa pede que paróquias da Europa recebam famílias de imigrantes”;
         - “Europa finalmente se mobiliza; centenas de refugiados na Hungria”.
         Pois é, Aylan, o mundo ficou um pouco maior com sua ajuda.


Sérgio Lordello


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