A arte de colocar a bola no barbante
Homenagem a Dirceu Cristal...
Crônica escrita pelo meu irmão Sillas Duarte no livro: "A turma do Jardim" - 2004
Ronaldinho,
o fenômeno não sabe cabecear. Já marcou gols de cabeça? Já. Lembro-me de um dos
últimos, num torneio da UEFA quando após meter a bola na rede, fechou a mão
direita e saiu batendo-a na testa, sorrindo, comemorando com os colegas da
equipe, deixando clara a alegria que estava sentindo por vencer a sua
deficiência. Os gols que ele não faz com o uso da cabeça, compensa com os pés,
ora com o direito, ora com o esquerdo, de sem pulo, de voleio, de calcanhar, de
bate pronto... Ora, se Ronaldinho não sabe cabecear, quem o sabe? Um ou outro
atacante, porém esporadicamente. Ora de peixinho, ora porque a bola resvala no
cocoruto e se desvia e desvia do goleiro; gente como Baltazar, o cabecinha de
ouro, hoje nem sonhando; talvez uma exceção seja Alex, do Santos, mas esse é
zagueiro, não é atacante. Volta e meia faz o seu, mas não está em campo para
isso, se preocupa mais em defender do que atacar – conforme o seu técnico
recomenda.
O
uso da cabeça para fazer a torcida gritar gol está cada vez mais raro. Mas,
houve um tempo, décadas atrás, em que – pelo menos, em Vila Levy – era fava
contada. Tinha o Leão, um centro avante, magricela, cara séria, de nome Dirceu
Cristal que, a cada jogo era a nossa esperança. Lembro-me que Dirceu morava
pelos lados do Bicão, próximo à rua Lavapés, e sua família possuía um
estaleiro, o Estaleiro Cristal se não me engano. Aliás achava engraçado a
cidade possuir um fabricante de barcos e lanchas, tão distante que ficávamos do
mar. Mas quando concluíam a construção, era bonito vê-los sobre um caminhão,
pronto para o transporte: brancos, reluzentes, as linhas bem desenhadas,
modernas, aptos para cair sobre as ondas, cortar a espuma, levar sabemos lá que
homens de boné enfeitados, que mulheres lindas, que garrafas de champanha, que
taças transparentes, que brindes efusivos.
Enquanto
Dirceu estivesse em campo, por mais dura que fosse a partida, não abandonávamos
a arquibancada, não desgrudávamos os olhos dos cruzamentos sobre a área
adversária, não descuidávamos de nenhum escanteio porque havia sempre no ar uma
brisa perfumada que varria as folhas dos eucaliptos que enfeitavam o campo e
nos traziam resquícios de esperança de vitória:
-
Vaaaaaai, Leão!
Ora
como um grito forte, saído da garganta cansada do torcedor persistente, ora
como uma prece, em tom baixo, pronunciada em silêncio introspectivo, mãos
fechadas com força, muito mais como um lamento que como um augúrio, bendizia-se
o time numa cega manifestação de amor e de paixão.
-
Vaaaaaai, Leão!
Muitas
vezes o Leão não foi. Éramos obrigados, então, a descer a rua Doutor Trajano
cabisbaixos, maldizendo a poeira e o adversário, xingando o árbitro, achando
que éramos muito condescendentes com os juízes que vinham á cidade, tratados a
pão de ló, nos roubavam na cara de todo mundo e iam embora à vontade, dando
risada talvez – quando, lá fora, na outras cidades, ao menor sinal de má fé, os
diretores dos outros times, deixavam claro para os safados que estavam correndo
risco de vida! E aqui, nossa diretoria sem nunca perder a mania de ser cavalheira e educada, onde já se viu?
E, do árbitro passávamos para o técnico, deste para o zagueiro, do defensor
para o atacante e assim terminávamos o
domingo com a cabeça mais inchada que nunca. Quando o Leão não ia...
Mas,
muitas e muitas vezes, o Leão foi. Durante o transcorrer do jogo, no último
minuto, nos descontos, empurrado pela massa, beneficiado pelo juiz, ajudado
pelo bandeirinha, na raça, na vontade, jogando bem, jogando mal, sob um sol de
quarenta graus, debaixo de uma chuva de dar medo, na pura sorte, na base do
sacrifício, numa falha do beque, numa bamba desgraçada, porque o goleiro se
vendeu, por causa da mala preta, por causa do toque de bola, porque também não
podemos levar ferro a vida inteira, porque Deus ajudou...
-
Vaaaaaai, Leão!
E
o Leão, indo ou não, para nós o importante era quando a bola descia na área
adversária e, dentro do espaço da grande área marcada pela cal, aquele rapaz
magro se movimentava para saltar e, lá em cima, meter-lhe a testa, um olho na posição
do goleiro, outro olho onde ia colocar o balão – naquela malha colorida que o
Índio, o zelador do estádio, amarrava nas traves e deixava estendida, esticada,
pronta para abraçar, com o carinho de mãe, o filho que finalmente a procurava.
E
nós, da arquibancada, nervosos, permanecíamos a torcer desesperadamente para
que Dirceu Cristal alcançasse aquele sol amarelado e, como se fosse Deus, o
fizesse repousar num lugar qualquer daquele manto verde tecido a mão que Índio,
um de seus súditos, tanto se preocupara em estender.
Sillas Luiz Lordelo Duarte
Do Livro: “A turma do Jardim”
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