No tempo em que fumar era bonito




         A igualdade era o fator principal entre nós crianças e jovens dos anos sessenta e setenta. A escola era pública, dinheiro poucos tinham, o médico e o farmacêutico eram da família e as autoridades eram o prefeito, o juiz, o padre, o delegado e o diretor da escola. Para cursar o ginasial era preciso decorar todas aquelas tabuadas no curso de admissão e lógico, depois de ter frequentado o catecismo na igreja mais próxima.
         Dinheiro era contado até os centavos, dava apenas para ir à sessão das cinco e depois dar uma passadinha no Vip Chopp, comprar um e ficar a noite inteira com o mesmo até começar a borbulhar de tão quente. Quando a gente namorava então era um sufoco, pois tínhamos que nos virar para arranjar uma grana extra para comprar bala Chita ou Chocotofe, conforme a firmeza do namoro. No geral prestávamos algum serviço para o irmão mais velho que já trabalhava, como comprar cigarros no boteco ou engraxar os seus sapatos para aumentar nosso orçamento.
         Refrigerante só tinha na mesa em dias especiais. Ovo de Pascoa, com muita sorte, era o número 12, só aberto no domingo e como era coisa rara, alguns duravam a semana inteira, pois se comia apenas uma lasquinha por dia. Presentes eram apenas no Natal e no aniversário e eu morria de raiva, pois meu aniversário é muito próximo do Natal e a lembrança era sempre adiada.
         Carnaval era um dilema, pois precisávamos guardar dinheiro para comprar bebidas. Num ano foi assim que aconteceu: o Hélio da Krayde, o Serginho Gullo e eu, já em dezembro, reservamos, às duras penas, três garrafas de rum para brincarmos nas noites de folia no clube e não é que poucos dias antes de começar, o “infeliz” do Hélio foi internado em Campinas com seu apêndice supurado. Na noite de sexta-feira fomos os dois deserdados visitar a mãe do adoentado em sua casa até que, depois de umas duas horas, sem ter mais assunto, uma irmã caridosa dele entregou-nos as garrafas. Ufa!
         Ninguém fugia do Tiro de Guerra, todos esperavam serem convocados.  O pessoal gostava tanto que até hoje são promovidos encontros das diversas turmas. O problema é que para uma delas (1967 ou 1968 não sei) o Brandino tinha uma foto do seu pelotão e a cada morte acontecida ele fazia uma cruz sobre o falecido. Recentemente ele é que se foi e o pessoal anda desesperado procurando a tal foto, pois dizem que só faltam oito cruzes a serem lançadas e três delas pertencem á frequentadores do Barzão.
         Hoje as coisas mudaram muito. Há muita fartura, facilidades, benevolência, protecionismo, ingratidão, passar de mão na cabeça. Talvez seja por isso que dizemos que somos do tempo em que fumar era bonito e fazer outra coisa era feio...

Sérgio Lordello

Comentários

Anônimo disse…
Primo, forte abraço e como são gostosas as tuas cronicas e a essa é muito real e tenho muitas saudades dos velhos tempos quando ia a Limeira ou vocês iam para Araras.

Paulinho
Meu amigo, Renato Limão e eu estamos com um projeto de reeditar um fanzine chamado "Não Funciona". Gostariamos de publicar sua crônica
"No Tempo em que Fumar era Bonito". O fanzine terá distribuição gratuíta então o fim será apenas de divulgação. Se for do seu interesse e nos autorizar a publicar a sua crônica, envie também uma mini-biografia. Meu contato alceuvitorpx@gmail.com --- Alceu.

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